A pesquisa científica e a expectativa por resultados estão no centro das discussões em todo o mundo. A pandemia gerada pelo vírus SARS-Cov-2 é investigada em tempo real e a exploração do conhecimento se multiplica na mesma velocidade da urgência sobre o assunto. A necessidade de uma rápida divulgação científica tem sido cumprida, observada por olhos analíticos de especialistas e muitas vezes com desconfiança pela população. As informações e desinformações são geradas na rapidez de um botão de compartilhamento. E, em casos conhecidos como os estudos sobre a cloroquina e a hidroxicloroquina, pauta de politização da pandemia, a ciência é posta em cheque exatamente no momento mais crucial da afirmação de sua importância e necessidade de investimento contínuo. Para esse debate, o CDTS ENTREVISTA chamou o Especialista do CDTS Fábio Zicker, médico, doutor em Epidemiologia e Medicina Tropical. Zicker foi coordenador de Fortalecimento Institucional do Programa Especial de Pesquisa e Treinamento em Doenças Tropicais da Organização Mundial de Saúde (OMS) e Consultor Regional de Pesquisa da Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS), com mais de 20 anos de experiência em projetos de pesquisa e implementação de epidemiologia clínica em doenças transmissíveis e doenças globais saúde na América do Sul, África e Ásia. Além de experiência estratégica e gerencial em programas de pesquisa e fortalecimento de capacidade, portfólios e redes de projetos.
O cenário dramático da pandemia impôs à comunidade científica uma necessidade urgente de produzir conhecimento científico para contribuir no controle da COVID-19. Na sua opinião, esse imediatismo de produção e divulgação pode influenciar questões éticas envolvendo pesquisadores e editores?
A epidemia de SARS-CoV-2 representa o maior desafio científico e de saúde pública deste século. O avanço do conhecimento sobre os mecanismos de transmissão e prevenção, padrão epidemiológico, fisiopatologia, evolução clínica, manejo do paciente, opções terapêuticas e vacinas estão construindo a história natural da doença em tempo real. A pressão por encontrar soluções para a crise explica o volume enorme de estudos, de informações científicas e não científicas, veiculadas por meio de publicações, conferências, e também pela mídia, que discutem e tentam estabelecer consensos ou ressaltar controvérsias sobre como enfrentar o problema. Paradoxalmente, ou não, o acesso e a difusão de informação têm levado a um certo grau de desinformação sobre as orientações preventivas, condutas médicas, e comportamento da população.
Considerando a gravidade da pandemia é natural que a pesquisa científica, e a pesquisa clínica em particular, caminhem a passos largos, muitas vezes obviando etapas de um trabalho rigoroso, como preconizado pelas orientações de “Boas Práticas de Pesquisa Clinica”. O PubMed tem 22.500 publicações sobre Covid-19 registradas e já existem 1.200 ensaios clínicos na base clinicaltrials.gov.
“É importante enfatizar que cientistas e tomadores de decisão precisam estar lado a lado para adotar condutas éticas, baseadas em evidências, e no momento adequado. É responsabilidade dos pesquisadores, instituições acadêmicas, conselhos de ética, serviços de saúde, editores e jornalistas validar suas fontes, avaliar a qualidade dos dados e informações, documentar as observações e procedimentos de forma a permitir o rastreamento dos dados ou a sua reprodução, quando aplicável”
Três princípios éticos universais regem a pesquisa envolvendo seres humanos: respeito pelas pessoas, beneficência, justiça, e todas as nuances e possíveis interpretações destes princípios na execução e integridade da pesquisa. Não cabe aqui discutir esses conceitos, mas chamar atenção que a credibilidade da pesquisa, seja ela realizada no contexto dos serviços de saúde público ou privado, bem como nas instituições acadêmicas, dependem da aderência a padrões técnicos reconhecidos, atendendo aos preceitos éticos e as exigências regulatórias.
No contexto de epidemias onde não existem intervenções reconhecidamente eficazes, como no caso da epidemia de Ebola no oeste da África, e na agora pandemia por Covid-19, se justifica o uso compassivo de intervenções experimentais no cuidado dos pacientes e em ensaios clínicos, mesmo que os produtos ou intervenções ainda não estejam regulamentadas pelas autoridades sanitárias.
No mesmo sentido, os membros do grupo R&D Blueprint da OMS propõem o conceito de core protocol para agilizar a avaliação de intervenções durante epidemias promovendo a cooperação e coordenação
É importante enfatizar que cientistas e tomadores de decisão precisam estar lado a lado para adotar condutas éticas, baseadas em evidências, e no momento adequado. É responsabilidade dos pesquisadores, instituições acadêmicas, conselhos de ética, serviços de saúde, editores e jornalistas validar suas fontes, avaliar a qualidade dos dados e informações, documentar as observações e procedimentos de forma a permitir o rastreamento dos dados ou a sua reprodução, quando aplicável.
Como sugestão recomendo a série de textos publicados na revista Nature a partir da edição 01 de junho 2020 sob o título “Science after the pandemic” refletindo sobre as mudanças que podem ser esperadas nas universidades, nos ensaios clínicos e publicação científica.
Para compartilhar o mais rápido possível seus estudos, muitos pesquisadores adotaram a prática de publicar em repositórios de preprint. Inclusive, o primeiro artigo relacionado à COVID-19 foi publicado no repositório bioRxiv apenas 20 dias depois que o governo chinês informou a OMS sobre os casos em Wuhan. Um estudo apontou que em maio de 2020, cerca de 850 pesquisas estão sendo publicadas nestes sistemas toda semana. Como funcionam os repositórios de preprint? Mesmo sem revisão por pares, esses estudos são considerados confiáveis? Existe algum mecanismo de controle de qualidade?
Os repositórios preprint bioRxiv e medRxiv trazem o beneficio da disseminação rápida e gratuita dos resultados da pesquisa biomédica e da pesquisa em ciências da saúde, mesmo que o artigo publicado esteja em processo de submissão concomitante à uma revista científica. O objetivo principal é expor os resultados para obter precedência científica, e permitir comentários que irão fortalecer a publicação definitiva. Embora as publicações não passem por revisão por pares ou edição, os repositórios fazem um filtro preliminar de qualidade, sobre aspectos éticos, material ofensivo, conteúdo não científico, risco de biossegurança e verificação de plágio. Os repositórios não endossam os métodos nem conclusões ou validade científica dos artigos preprint.
Acompanhando a tendência dos repositórios preprint a Biblioteca Nacional de Medicina dos Estados Unidos da América (NLM) lançou este mês um projeto piloto para testar a validade de incluir no PubMed Central (PMC) os preprint das pesquisas financiadas pelo NIH. O objetivo é explorar métodos para difusão precoce de resultados de pesquisa do NIH.
Diante da situação da pandemia, os repositórios estão dando prioridade e processando um volume crescente de documentos preprint (ver gráficos abaixo). Até 14 junho de 2020, o medRxiv havia publicado 4.161 artigos sobre COVID-19 e o bioRxIV, 992 artigos.
Há sem dúvida uma preocupação de que artigos ainda não revisados ou editados pelas revistas, possam conter dados de origem desconhecida, resultados duvidosos ou controversos que venham influenciar a opinião pública e sejam utilizados para tomada de decisões em saúde pública e conduta clínica. É responsabilidade de todos fazer bom uso das informações e se educar antes de divulgar assuntos que possam gerar conflitos na população.
Tanto periódicos tradicionais quanto em repositórios de preprint aderiram ao acesso aberto na pandemia e tornaram à literatura científica acessível a todos e sem custos. Você acredita que a experiência atual afetará a forma pela qual as descobertas serão divulgadas no futuro?
A Covid-19 mudou a forma como o mundo faz ciência, tornando a pesquisa mais colaborativa, transparente e eficiente. As plataformas de acesso aberto agilizaram o compartilhamento de artigos e devem se consolidar oferecendo uma forte competição ao processo editorial tradicional. Por iniciativa da Wellcome Trust uma centena de editoras científicas assinaram um acordo para disponibilizarem textos preprint, além dos artigos revisados e publicados de forma tradicional. O objetivo é acelerar a difusão do conhecimento, promover a colaboração e facilitar a tomada de decisões. As editoras reafirmaram os princípios estabelecidos em 2016 “Statement on data sharing in public health emergencies” se comprometendo a colaborar em situações de emergência. Neste contexto, a Nature criou uma plataforma aberta (Outbreak Science Rapid PREreview) para facilitar a revisão rápida de preprint relacionados a epidemia pela Covid-19. O mesmo deve acontecer com outras revistas e com Programa Scielo/FAPESP, como anunciado por seu Diretor.
“Toda essa mudança na disponibilidade do conhecimento tem transformado a comunicação social. A mídia, as redes sociais, e especialmente o Twitter, mudaram a prática jornalística e política, influenciando de forma marcada a opinião pública. Infelizmente, o impacto sobre o comportamento preventivo em saúde está aquém do desejado”
Um aspecto importante das plataformas é a possibilidade de incluir as bases de dados originais utilizadas nas pesquisas. A questão principal é sobre o direito dos dados ou do conhecimento científico, muitas vezes obtido com recursos públicos, mas que trazem benefícios reservados às editoras, aos pesquisadores ou ao mercado farmacêutico. No contexto da ciência aberta, esses princípios deverão ser revistos.
Toda essa mudança na disponibilidade do conhecimento tem transformado a comunicação social. A mídia, as redes sociais, e especialmente o Twitter, mudaram a prática jornalística e política, influenciando de forma marcada a opinião pública. Infelizmente, o impacto sobre o comportamento preventivo em saúde está aquém do desejado.
Essas transformações abrem espaço para estudos analíticos que promovam a interface disciplinar, a articulação, integração e revisão dos resultados de pesquisa, e a consolidação do conhecimento em beneficio da saúde da população.
Recentemente, o grupo de Saúde Global e Redes do CDTS, submeteu ao programa Inova Fiocruz uma proposta para estudar a evolução das redes de colaboração em pesquisa e desenvolvimento tecnológico sobre Covid-19. O projeto busca identificar lideranças, áreas de maior desenvolvimento e, em especial, o papel das parcerias sul-sul, norte-sul e público-privado para avaliar a dinâmica e a capacidade de resposta científica internacional às epidemias (“science preparedness”) como facilitador da construção do conhecimento sobre o SARS-CoV-2 e a Covid-19.
Ao longo da pandemia, os periódicos tradicionais reduziram o tempo com o qual um estudo é aprovado para publicação. Na sua opinião, essa estratégia pode por em risco a qualidade da pesquisa?
De fato, o tempo para aprovação e publicação de artigos sobre Covid-19 foi reduzido drasticamente, indicando a prioridade dada pelas revistas ao novo conhecimento sobre a pandemia. Segundo um artigo publicado na bioRxiv, o tempo médio entre submissão e publicação de 669 artigos em 14 revistas especializadas reduziu de 117 para 60 dias, justificado pela redução do tempo destinado a revisão por pares (figura abaixo). O mesmo não ocorreu para artigos não relacionados à Covid-19.
Entre as estratégias para reduzir o tempo para publicação, algumas revistas reduziram as solicitações de experimentos adicionais durante a revisão, diminuíram o tempo de revisão e retorno dos manuscritos, expandiram o quadro de revisores e têm estimulado a submissão de preprint.
Não há duvida que essa aceleração do processo gera preocupações quanto a qualidade da pesquisa e das publicações. Uma forma de oferecer maior transparência aos leitores seria dar acesso de forma anônima aos comentários dos revisores, como já ocorre em algumas revistas. A análise dos revisores especialistas sobre o valor e qualidade dos artigos contribuiria muito para uma avaliação informada do leitor.
Horbach Preprint at bioRxiv https://doi.org/10.1101/2020.04.18.045963 (2020)
Os tradicionais e respeitados periódicos científicos The Lancet e o New England Journal of Medicine tiveram duas publicações relacionadas à COVID-19 retratadas no início deste mês, depois que a Surgisphere, empresa responsável pela fonte de dados dos estudos se recusou a disponibilizar os dados brutos para uma auditoria independente, pondo em xeque a veracidade dos dados e análises publicadas. Qual o impacto da retração na confiança da sociedade no processo científico como um todo?
Um artigo pode ser retratado pelos próprios autores ou editores por erro, fraude ou disputa, incluindo razoes éticas, plágio, fabricação ou manipulação de dados, desenhos experimentais errados, falta de transparência entre outros. A retração alerta o leitor sobre erros sérios intencionais ou não, que podem levar a conclusões e decisões incorretas.
Toda retração de publicação gera um impacto direto na comunidade científica e nas instituições financiadoras da pesquisa. No caso mencionado o impacto foi muito mais extenso, atingindo a confiança da sociedade, já que o objeto em questão é motivo de controvérsia conhecida. A visibilidade popular e política dada aos medicamentos, como uma possível opção terapêutica e o relato de maior risco de mortalidade nos pacientes tratados, motivou uma reação geral, incluindo a suspensão temporária do braço de tratamento do estudo global Solidariedade coordenado pela OMS. No Brasil e nos Estados Unidos da América, esse fato foi amplificado politicamente com a ajuda dos meios de comunicação social. A população já confusa na busca de uma resposta confiável e um tratamento eficaz ficou ainda mais desorientada fazendo surgir toda sorte de teorias de conspiração.
“A politização da pandemia é um desserviço que os presidentes fazem a seus respectivos países e ao mundo. Ao insistir no uso ampliado da cloroquina e hidroxicloroquina como terapia eficaz para o Covid-19 contrariam as evidências cientificas existentes até o momento e as recomendações de seus próprios assessores e departamentos de saúde”
A possível relevância do estudo está associada à magnitude da amostra estudada e ao desfecho clínico avaliado - mortalidade hospitalar. A base de dados contratada pelos autores foi denunciada como inconsistente e sua legitimidadefoi questionada. Por demanda da comunidade científica a revista solicitou uma auditoria independente que não foi autorizada pela companhia por motivo do acordo comercial e confidencialidade. O fato é que a avaliação retrospectiva de eficácia de tratamento por meio de grandes bases de dados gera desconfiança, que infelizmente não despertou a atenção do crivo editorial.
Este evento chama atenção sobre como estudos de tamanha envergadura, assinado por autores conhecidos e publicados em revistas de alta credibilidade podem envolver fraudes e erros.
Alguns críticos apontam que a retração da pesquisa no periódico The Lancet, que indicava um aumento drástico na taxa de mortalidade de pacientes com COVID-19 quando tratados com cloroquina e hidrocloroquina, fortaleceu o discurso de apoiadores dos presidentes Donald Trump e Jair Bolsonaro que defendiam o uso destes fármacos mesmo na ausência de evidências científicas robustas. Como analisa a politização da pandemia e especial envolvendo o uso desses medicamentos?
A politização da pandemia é um desserviço que os presidentes fazem a seus respectivos países e ao mundo. Ao insistir no uso ampliado da cloroquina e hidroxicloroquina como terapia eficaz para o Covid-19 contrariam as evidências cientificas existentes até o momento e as recomendações de seus próprios assessores e departamentos de saúde.
A única explicação para a essa atitude é a tentativa de obter simpatia popular insinuando a existência de uma solução para a pandemia e que corresponderia aos serviços de saúde implementá-la. Ao mesmo tempo há o temor que o impacto econômico provocado pela pandemia, e toda sua consequência, prejudique o apoio eleitoral futuro dos candidatos declarados.
“A tentativa de desacreditar as recomendações da OMS, que é responsável pelo Regulamento Sanitário Internacional, faz parte do jogo político e reflete ignorância sobre o funcionamento da Organização (...) A acusação de que a OMS seria “very China-centric” (“muito centrada na China”) e a ameaça de corte de recursos são artifícios do discurso político para desviar a atenção da população, quando na verdade, a incapacidade de lidar com a epidemia em seus países, reflete falta de liderança, deficiência da estrutura de saúde e a desigualdade de acesso”
A tentativa de desacreditar as recomendações da OMS, que é responsável pelo Regulamento Sanitário Internacional,faz parte do jogo político e reflete ignorância sobre o funcionamento da Organização. As recomendações da OMS são construídas a partir de evidências científicas e consenso entre especialistas de todo o mundo que participam de conselhos consultivos, com boa representação de brasileiros e norte-americanos. A Organização responde pelos anseios e necessidades dos 194 países membros, sem demonstrar favoritismo, e sem interferir nas politicas internais nacionais. Os países são soberanos na adoção ou não das recomendações. Como disse o Diretor "We are close to every nation, we are colour-blind." (“Estamos perto de todas as nações, somos daltônicos”, em livre tradução)
A acusação de que a OMS seria “very China-centric” (“muito centrada na China”) e a ameaça de corte de recursos são artifícios do discurso político para desviar a atenção da população, quando na verdade, a incapacidade de lidar com a epidemia em seus países, reflete falta de liderança, deficiência da estrutura de saúde e a desigualdade de acesso. O comportamento dos presidentes dividiu ainda mais a sociedade, caracterizando um posicionamento de direita vs. esquerda, republicanos vs. democratas. O mesmo acontece com o conflito em relação aos dados epidemiológicos e hospitalares, e com a interpretação equivocada da fala da chefe do programa de emergência da OMS. Em ambos os casos há um esforço para mostrar um cenário mais favorável, minimizando o impacto da pandemia e transferindo a responsabilidade e a possível culpa para os estados e municípios. A falta de um comando central e de consenso para o combate à pandemia tem prejudicado a todos nos dois países.
Por Fernanda Fonseca e Gardênia Vargas
Equipe de Comunicação do CDTS/Fiocruz