Modelos matemáticos são utilizados na ciência há muitos anos e, são uma forma de organizar e relacionar as informações disponíveis sobre uma determinada epidemia, além de incorporar as incertezas que existem sobre o tema. Um deles ficou bem famoso na última semana, o estudo do Imperial College of London, que mudou totalmente a forma com a qual o Reino Unido vinha lidando com o novo coronavírus. O modelo adotado demonstrou, por exemplo, que a aplicação de estratégias de supressão, ou seja, distanciamento social mais radical, pode salvar em torno de 500 mil vidas, só no Brasil. E para falar sobre o tema, convidamos o epidemiologista Daniel Marinho, atualmente na equipe do Departamento de Epidemiologia e Métodos Quantitativos em Saúde da ENSP/Fiocruz.
Poderia comentar sobre importância de modelos matemáticos na análise da pandemia de Covid-19?
Modelos matemáticos são utilizados em epidemiologia como uma forma de organizar e relacionar as informações disponíveis sobre uma determinada epidemia, bem como, para incorporar as incertezas que existem sobre a epidemia. A modelagem matemática de epidemias tem sua história ligada às doenças transmissíveis como a COVID-19, mas também pode ser utilizada em doenças crônicas, como por exemplo, na estimativa de progressão entre os estágios clínicos de uma doença.
No caso específico da COVID-19, os modelos matemáticos podem auxiliar no entendimento da epidemia, ajudando a estimar: que fração da população será infectada ao final do ciclo epidêmico; quantos pacientes estarão infectados no pico de máxima incidência; quão rápida é a infecção - por exemplo, informando em quanto tempo o número de infectados dobra; quantas pessoas suscetíveis à doença são atingidas por um indivíduo já infectado; como uma epidemia se distribuirá em um determinado espaço, prevendo quais cidades estão em maior risco de vivenciarem o aumento súbito de casos. Além disso, ao agregar informações sobre o sistema de saúde, a modelagem matemática pode ajudar a estimar a demanda por serviços, bem como seu ponto de saturação.
Com base nessas informações, os modelos matemáticos auxiliam na escolha das estratégias para enfrentamento da pandemia pelo uso de simulações para cada cenário de intervenção.
Os modelos iniciais baseiam-se na distribuição homogênea da infecção na população. Com o desenvolvimento das técnicas de modelagem, foram incorporadas formas de lidar com a heterogeneidade da população, por exemplo, tratando o contato entre grupos diferentes como idosos e crianças. O estudo da heterogeneidade no contato chegou até mesmo ao estudo da transmissão da doença por redes de contato social.
Posteriormente os modelos evoluíram para incluir além da heterogeneidade local da epidemia, a possibilidade de comunicação entre populações com situações epidêmicas distintas, para tal, podendo usar informações do fluxo de pessoas pelos mais diversos modais de transporte. Nesse caso, acrescenta-se não só a variação temporal dos casos, como também a variação espacial dos mesmos.
Estudo do Imperial College of London (ICL) divulgados no dia 26/03, mostrou que a adoção de estratégias de supressão pode salvar em torno de 500 mil vidas no Brasil. Como você analisa o movimento de alguns setores da sociedade e do governo pressionando para retorno à normalidade e às atividades no país?
A ideia de relaxamento das medidas de distanciamento social, além da questão econômica, encontra sua fundamentação no conceito epidemiológico de imunidade de grupo, por vezes referido como “efeito rebanho”. Segundo esse raciocínio o aumento do número de indivíduos infectados com baixo risco de apresentarem formas graves da COVID-19 levaria à redução da probabilidade de transmissão da doença para os grupos mais vulneráveis à forma grave da doença.
Outro argumento seria a possibilidade do vírus ter circulado na população brasileira antes que começássemos a registrar os primeiros casos, o que reduziria a fração de susceptíveis na nossa população.
Para podermos analisar essa proposta de relaxamento das medidas de distanciamento social, devemos lembrar que a capacidade propagação de uma epidemia depende, sim, da proporção de pessoas suscetíveis à doença, mas também dos contatos efetivos com outras pessoas e do tempo que um indivíduo infectado é capaz de manter-se infectante, ou seja, capaz de infectar outro alguém.
Desse modo, as medidas de distanciamento social agem fundamentalmente na redução dos contatos entre as pessoas, assim como na redução do tempo que o indivíduo infectado transmite a doença, principalmente nos casos assintomáticos.
Assim sendo, podemos responder a essa questão recorrendo a quatro distintas abordagens:
- A primeira pela evidência histórica das intervenções de distanciamento social em doenças infecciosas respiratórias, tendo como modelo a pandemia de gripe de 1918 (conhecida como Gripe Espanhola). Em estudo retrospectivo, mostrou-se que cidades americanas que retardaram o início das medidas de distanciamento social, ou as relaxaram precocemente tiveram epidemias mais intensas, e por vezes dois picos epidêmicos seguidos.
- A segunda evidência vem dos países que estão testando sua população de forma muito mais ampla que o Brasil, com destaque para a Coreia do Sul, a Alemanha e mostrando uma baixa proporção de testes positivos entre a população, mesmo considerando-se que a testagem não conta com o processo de randomização.
- A terceira seriam os estudos de modelagem matemática como o do Imperial College of London que apontam para uma maior efetividade das medidas mais intensas de distanciamento social, principalmente ao serem adotadas quando a mortalidade por COVID-19 ainda se encontra em valores relativamente reduzidos.
- A quarta forma de avaliar essa questão seria pela evidência de regiões onde iniciou-se com medidas de distanciamento social mais brandas e com o decorrer da epidemia foi necessário aumentar o rigor das intervenções para se evitar a falência dos serviços de saúde.
Um questionamento que permanece seria, como sairemos dessas medidas de distanciamento social? Para respondê-la retorno aos fatores envolvidos na propagação da epidemia. Esse momento de relaxamento das medidas de distanciamento social deve seguir-se à trajetória decrescente do número de infectados, num momento onde a epidemia esteja perdendo sua força, pois, nesse momento, a construção da imunidade de grupo estará em andamento, o retorno deverá ser gradual e envolvendo um amplo processo de testagem dos indivíduos que retornarem a vida rotineira, para que se evite uma segunda onda da epidemia.
Alguns detalhes metodológicos do estudo não deixam claro como foram realizadas as modelagens para todos os países do mundo. Apenas é apresentada uma tabela com os resultados por país; atribuindo um valor de zero caso nenhuma intervenção fosse tomada (em termos de distanciamento social), ou um percentual relacionado à restrição de contatos entre a população. O Japão, por exemplo, foi um caso que chamou atenção: o total de óbitos foi calculado em milhões de pessoas (10.161.559 - com zero de intervenção - e 1.381.819 - com supressão/distanciamento social 75%). Mas até agora, no país, os casos confirmados somam em torno de 1.500 e o número de óbitos, em torno de 50.
Além da peculiaridade de cada país, também sabemos que algumas escolhas metodológicas em modelos matemáticos podem ser grandes limitadores. Como você encara tais limitações, incluindo possíveis disparidades entre pesquisa e realidade?
Como os modelos matemáticos envolvem rotinas de simulações com múltiplos parâmetros e, por vezes, com processos computacionais muito intensos, estes se tornam cada vez de reprodutibilidade mais complexa. Por isso, existe um esforço de torná-los o mais transparente possível. No caso específico do modelo para a pandemia de COVID-19 desenvolvido pelo Imperial College of London, os autores utilizaram um modelo de simulação individual descrito anteriormente por eles e utilizado frente a epidemia de H1N1. A vantagem de utilizar a estrutura de um modelo utilizado anteriormente reside no fato sua estrutura ter sido confrontada com os dados de todo o processo epidêmico anterior.
Sendo assim, os questionamentos estariam ainda na definição dos parâmetros para uso na pandemia atual, por isso o grupo descreveu em seu relatório de 16 de março de 2020 toda a busca por evidências para a parametrização do modelo atual. Essa busca foi bastante detalhada e incluiu dados recentes principalmente para os padrões de contato nas diferentes regiões.
Na minha opinião, a maior questão quanto a esses modelos “em tempo real” é o desconhecimento dos parâmetros diretamente ligados à epidemia atual. Por exemplo, se o registro de óbitos subnotificar os casos de COVID-19, o parâmetro de letalidade estará bastante prejudicado, de mesmo modo, se são realizados poucos testes diagnósticos ou, se são realizados no momento inadequado, a incidência da doença será bastante alterada.
Soma-se a isso a questão temporal, uma vez que diferentes regiões estão em momentos diferentes da epidemia. Enquanto alguns países estão desacelerando, outros estão entrando na fase de crescimento exponencial dos casos. Por esses motivos, é comum que os grupos de pesquisa atualizem suas previsões várias vezes ao longo do tempo.
Os autores do estudo discutem que as curvas produzidas como base em padrões de dispersão de países ricos podem alterar significativamente a predição em países pobres. Como você analisa a interferência de fatores complicadores na realidade brasileiras e quais seriam estes?
Ao analisarmos a epidemia atual em diferentes contextos socioeconômicos precisamos considerar alguns fatores como importantes para explicar a trajetória da epidemia. Os dados disponíveis até o momento apontam para uma maior letalidade nos mais idosos e, em pessoas com comorbidades, sendo assim, o primeiro fator a ser considerado seria a distribuição etária da população, bem como a prevalência das comorbidades nas diferentes regiões.
Outro fator a se observar é o adensamento populacional, uma vez que a transmissão é potencializada com a proximidade entre as pessoas. A questão do planejamento urbano também se torna importante, principalmente se as pessoas possuem a necessidade de longos deslocamentos em transportes de massa, bem como as condições de habitação, e saneamento para que possam ser implementadas as medidas de distanciamento social e de higienização necessárias ao controle da epidemia.
Além da peculiaridade de cada país, também sabemos que algumas escolhas metodológicas em modelos matemáticos podem ser grandes limitadores. Para que haja um estudo de modelagem mais fidedigno à realidade brasileira, quais são os fatores que deveriam ser considerados?
No caso específico do Brasil o caráter continental do país apresenta-se como mais um fator complicador para a análise, que deve ser capaz de lidar tanto com os grandes centros urbanos e suas áreas de influência geográfica, como em áreas remotas.
* Daniel Marinho é graduado em Farmácia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UERJ), com habilitação em Farmácia Industrial pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), mestre em Vigilância Sanitária pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e Doutor em epidemiologia pela Escola Nacional em Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP). É pesquisador do Instituto Nacional de C&T de Inovação em Doenças de Populações Negligenciadas (INCT-IDPN); Servidor da Fiocruz desde 2006, pelo Centro de Desenvolvimento Tecnológico em Saúde (CDTS) e; atualmente compõe a equipe do Departamento de Epidemiologia e Métodos Quantitativos em Saúde da ENSP. Durante esse tempo dedica-se à utilização de métodos de modelagem de decisão aplicados a avaliação de tecnologias em saúde, principalmente nas tecnologias destinada ao diagnóstico e ao tratamento de doenças infecciosas.
Entrevista por Gardênia Vargas e Fernanda Fonseca
Equipe de comunicação do CDTS/Fiocruz