Advogado Marco Túlio conversa sobre como garantias jurídicas na invenção podem influenciar na resposta mundial ao enfrentamento contra o novo coronavírus.
A união, desde políticas locais até as mais complexas discussões sobre as políticas internacionais, tem sido um ponto importante quando se pensa em ações de enfretamento ao novo coronavírus. E no centro desta discussão, a propriedade intelectual. Afinal, em uma situação de emergência em saúde global, qual seria o direito e/ou o dever do inventor de possíveis soluções para o controle de uma pandemia? Para tal, o CDTS convidou Marco Túlio de Barros e Castro, advogado do Escritório de Inovação (EI!) do CDTS/Fiocruz e Doutor em políticas públicas, estratégias e desenvolvimento pelo PPDED/UFRJ.
Há uma grande corrida para o desenvolvimento de uma vacina contra o vírus SARS-Cov-2 que já matou mais 350mil em todo mundo, porém, existe uma preocupação latente com questões restritivas associadas à propriedade intelectual. Quais seriam os riscos envolvidos?
É preciso lembrar que uma patente garante ao seu titular um direito de exclusividade sobre a invenção. Ou seja, apenas ele pode produzir, usar, colocar à venda, vender ou importar a invenção patenteada. Esse direito de exclusividade dá ao titular da patente um poder muito significativo de fixar o preço em patamares elevados ou mesmo discriminar determinados países.
Nesse caso, o direito de propriedade intelectual pode constituir uma barreira ao acesso a uma nova vacina para a Covid-19, por exemplo. Por essa razão, o tema dos possíveis impactos dos direitos de propriedade intelectual sobre vacinas ou medicamentos voltou à tona com toda a força durante a pandemia da Covid-19.
O sistema de patentes deveria ser um importante indutor de desenvolvimento tecnológico e inovação. Idealmente, o inventor abre mão do segredo e revela a invenção, em troca de um direito de exclusividade. A revelação das informações garantiria o impulso para o desenvolvimento de inovações subsequentes gerando um verdadeiro ciclo virtuoso.
Mas, na prática, o sistema não funciona de forma tão simples e virtuosa, pois existem diversas estratégias empresariais que são rotineiramente utilizadas para aumentar artificialmente o tempo e o escopo de proteção, desvirtuando a finalidade do próprio sistema.
No contexto de uma pandemia surgem algumas perguntas: como garantir uma vacina (ou mesmo um tratamento medicamentoso) que seja amplamente acessível? É ético que uma única empresa possa impedir o acesso a uma vacina ou medicamento durante uma pandemia?
É preciso que o Brasil encare a propriedade intelectual como um tema estratégico para o seu desenvolvimento tecnológico, social e econômico, o que não vem ocorrendo.
“A concessão de uma patente deve ser sempre ponderada pelo interesse público. Uma pandemia como estamos vivenciando é o caso clássico que justifica o licenciamento compulsório.”
O licenciamento compulsório, popularmente conhecido como a quebra de patente, seria permitido nessa situação de emergência sanitária?
Existe um ponto muito importante que deve ser esclarecido. O licenciamento compulsório de patentes é uma medida regular, prevista em tratados internacionais sobre direitos de propriedade intelectual. A expressão popular quebra de patentes pode passar a interpretação equivocada de que se trata de algo irregular, ilícito.
Ao licenciar compulsoriamente uma patente um país não está praticando uma irregularidade, mas exercendo uma prerrogativa válida e reconhecida internacionalmente.
A concessão de uma patente deve ser sempre ponderada pelo interesse público. Uma pandemia como estamos vivenciando é o caso clássico que justifica o licenciamento compulsório.
O licenciamento compulsório é, portanto, um importante instrumento que pode ser utilizado para garantir o acesso a medicamentos ou vacinas. E a simples ameaça do licenciamento compulsório garante poder de barganha para negociar preços, estratégia essa que foi amplamente utilizada no passado pelo Brasil no caso dos medicamentos para HIV/Aids.
Mas existe uma narrativa que tenta demonizar o licenciamento compulsório, que sustenta que a sua utilização afastaria investimentos em pesquisa e desenvolvimento e etc. Não há, contudo, evidência efetiva de que essa ameaça ou qualquer outro efeito prejudicial vá se concretizar.
Alguns cientistas e organizações vêm defendendo as iniciativas de compartilhamento de patentes (patent pooling). Em que consiste esse modelo e quais seriam as vantagens?
Os pools de patentes são instrumentos que reúnem patentes de diversos titulares com o objetivo de facilitar os processos de licenciamento voluntário, normalmente assegurando condições mais vantajosas para países de menor grau de desenvolvimento.
São iniciativas interessantes e que devem ser estimuladas, que efetivamente reduzem os custos de transação e estimulam o licenciamento.
O pool de patentes mais ativo na atualidade é o Medicine Patent Pool (MPP) fundado e financiado pela Unitaid, que possui um papel muito relevante e abrange 18 produtos para HIV, tuberculose e hepatite C, dentre outras doenças. O MPP está autorizado a licenciar a tecnologia para fabricantes de genéricos que possuam qualificação técnica comprovada.
Muito embora o trabalho dos pools de patentes atualmente existentes seja muito importante, o volume de produtos abrangidos ainda é tímido, frente às necessidades globais de acesso a medicamentos.
“Essa nova decisão da Gilead de excluir o Brasil da lista de países beneficiados pelo licenciamento voluntário do Remdesivir terá efeitos sérios e demonstra que essa empresa não está comprometida em garantir o acesso dos cidadãos brasileiros aos seus medicamentos.”
A biofarmacêutica americana Gilead Sciences assinou acordos de licenciamento voluntário não exclusivo do Remdesivir com fabricantes de medicamentos genéricos. Com esse acordo, o medicamento experimental tido como grande aposta para o tratamento da COVID-19 seria produzido e distribuído em sua versão genérica com isenção de royalties em 127 países, porém o Brasil não está nesta lista. Qual seria o impacto dessa decisão?
Infelizmente, essa não é a primeira vez que isso acontece. Em 2014, a mesma empresa Gilead licenciou voluntariamente dois antivirais fundamentais para o tratamento da Hepatite C (sofosbuvir e ledipasvir) para um pool de empresas indianas e o Brasil foi excluído do escopo territorial desse acordo.
Isso obrigou o Brasil negociar diretamente com a Gilead em condições muito menos benéficas. Aliás, a Gilead está se esforçando para tentar impedir uma cooperação entre a Fiocruz (que conta com a participação de Farmanguinhos e do CDTS) e um consórcio de empresas nacionais para produzir uma versão mais barata do Sofosbuvir.
Essa nova decisão da Gilead de excluir o Brasil da lista de países beneficiados pelo licenciamento voluntário do Remdesivir terá efeitos sérios e demonstra que essa empresa não está comprometida em garantir o acesso dos cidadãos brasileiros aos seus medicamentos.
Com o objetivo de garantir o acesso universal à tecnologias de saúde para combater a covid-19, a OMS divulgou nesta última sexta-feira, 29/05, o COVID-19 Technology Access Pool (C-TAP) - um marco legal de acesso à tecnologia. O que isso representa na prática? O que estaria assegurado?
Essa iniciativa foi liderada pela Costa Rica em conjunto com a OMS e seu objetivo é incentivar a livre circulação e o compartilhamento de conhecimento, propriedade intelectual e dados necessários para a detecção, prevenção e tratamento da Covid-19.
Em se tratando de patentes e outros direitos de propriedade intelectual, o licenciamento voluntário é estimulado, de forma a facilitar a produção, distribuição e uso em escala global.
É uma medida importante, mas existem dúvidas sobre a sua efetividade. Primeiro, por se tratar de uma série de recomendações sem efeito que os vincule de fato. Segundo, porque os países que efetivamente detém as patentes nas áreas de medicamentos e vacinas não aderiram a essa iniciativa. Até agora são países periféricos no que diz respeito ao domínio de tecnologias farmacêuticas, com exceção, talvez da Bélgica e Holanda: Argentina, Bangladesh, Barbados, Bégica, Belize, Butão, Brasil, Chile, República Dominicana, Equador, Egito, El Salvador, Honduras, Indonésia, Líbano, Luxemburgo, Malásia, Maldivas, México, Mongólia, Moçambique, Noruega, Omã, Paquistão, Palau, Panamá, Paraguai, Peru, Portugal, São Vicente e Granadinas, África do Sul, Sri Lanka, Sudão, Holanda, Timor-Leste, Uruguai e Zimbabué.
“Os países não conseguirão lidar isoladamente com esse problema e essa talvez seja a grande lição deixada pela Covid-19. Precisamos investir cada vez mais em soluções colaborativas multinacionais, em ações concertadas, em esforços conjuntos.”
Os Estados Unidos são importante potência na área de PD&I e possuem importantes iniciativas, seja do setor público ou privado, para o desenvolvimento de vacinas e medicamentos contra a COVID-19. O presidente americano Donald Trump nesta última sexta-feira, 29/05, atacou a China e rompeu com a OMS. Na sua opinião, como estas questões envolvendo relações internacionais podem impactar nas estratégias mundiais de controle da pandemia?
Os direitos de propriedade intelectual são essencialmente internacionais, tanto é assim que desde o final do século 19 já existem tratados internacionais sobre o tema. Isso significa dizer que as discussões sobre propriedade intelectual são profundamente influenciadas pela conjuntura geopolítica internacional.
A atual pandemia da Covid-19 deveria nos ensinar que a instituição de um sistema global de saúde capaz de responder a esse tipo de desafio é uma necessidade urgente. Os países não conseguirão lidar isoladamente com esse problema e essa talvez seja a grande lição deixada pela Covid-19.
Precisamos investir cada vez mais em soluções colaborativas multinacionais, em ações concertadas, em esforços conjuntos. É simplesmente trágico que nesse momento tão grave a OMS seja fragilizada por conflitos políticos.
Aliás, a pandemia fez aflorar alguns fatos extremamente graves, tais como acusações de “pirataria” de equipamentos de proteção individuais e respiradores, e até a tentativa de um país tornar-se detentor exclusivo de direitos sobre a pesquisa promissora de uma vacina.
Qual o posicionamento do Brasil em relação às questões patentárias neste cenário de pandemia?
O Brasil, especialmente nos anos 2000, foi um protagonista no cenário internacional nas discussões sobre acesso a medicamentos e propriedade intelectual, em fóruns multilaterais como a OMS e a OMC.
Atualmente, não há mais esse protagonismo brasileiro, pois o país tem sido levado a reboque de iniciativas de outras nações. O Brasil não foi convidado a participar de algumas iniciativas colaborativas importantes para o desenvolvimento de uma vacina para a Covid-19 e, segundo, informações publicadas na imprensa essa decisão teria surpreendido os diplomatas brasileiros que sequer tinham ciência do projeto.
Não há uma posição formal do governo federal sobre o licenciamento compulsório de patentes, mas o tema vem unindo correntes políticas diferentes, incluindo partidos da base do governo. Um projeto de lei apresentado recentemente tratando do licenciamento compulsório de medicamentos e equipamentos utilizados no combate ao coronavírus angariou apoio de pelo menos 8 partidos, incluindo o PT e o PSL.
“A primeira diz respeito à importância de termos um SUS forte, com financiamento adequado. A pandemia pode ter alterado a percepção da população e dos formuladores de políticas públicas sobre o real impacto do SUS na vida das pessoas.”
Então, ao pensarmos na situação da saúde no Brasil, você consegue enxergar algum cenário positivo acerca das discussões que vem sido travadas durante o enfretamento contra o novo coronavírus por aqui?
Creio que existem ao menos três questões que certamente serão discutidas com maior profundidade durante e após a pandemia no Brasil. A primeira diz respeito à importância de termos um SUS forte, com financiamento adequado. A pandemia pode ter alterado a percepção da população e dos formuladores de políticas públicas sobre o real impacto do SUS na vida das pessoas. A segunda está relacionada com a superação do grau de dependência externa do Complexo Econômico-Industrial da Saúde e a necessidade de investimentos robustos em C,T&I. E, finalmente, temos a questão da relação entre propriedade intelectual e acesso a medicamentos e como o nosso sistema de patentes pode ser direcionado para um rumo de maior inclusão e garantia de acesso.
Por Gardênia Vargas e Fernanda Fonseca
Equipe de comunicação do CDTS