Alguns estudos já apontam maior desgaste, estresse e redução de produtividade no idealizado ‘trabalho sem sair de casa’. Outros dizem que nada mudou ou até que os resultados são mais expressivos. Grandes empresas apontam mudanças sobre investimentos e projetam o home office como solução para o futuro. E para a ciência, como tem sido? Como os cientistas brasileiros andam convivendo com tantas mudanças de estrutura física e psicológica? O Parent in Science, projeto brasileiro que discute a maternidade na ciência, divulgou um estudo mostrando a queda de mais 50% na disponibilidade de trabalho remoto entre os entrevistados com filhos. E para discutir sobre o impacto na mudança da rotina profissional dos cientistas, as soluções encontradas até agora para manter os grupos engajados e, sobre a já aparente queda na produtividade das mulheres quando comparada aos homens, o CDTS convida a Especialista Carmen Penido. Pesquisadora que, atualmente, além das pesquisas na área de biologia celular e molecular, pesquisas com ênfase em imunologia da inflamação, pesquisa translacional em fármacos e medicamentos, atua também na área de ética e integridade em pesquisa.
O isolamento social, fundamental no controle da pandemia de COVID-19, já contabiliza pelo menos três meses no Brasil. Na sua opinião, qual foi o impacto dessa mudança na rotina profissional dos cientistas?
O impacto do distanciamento social na rotina dos cientistas foi imenso. Com o cancelamento das atividades presenciais, a maioria dos projetos que dependem da estrutura física de laboratórios e de biotérios foram suspensos. A suspensão destas atividades prejudicou imensamente (ou totalmente) o cumprimento do cronograma de projetos de pesquisa/desenvolvimento tecnológico e teses.
Neste cenário, agências de fomento têm se posicionado frente à estas dificuldades. Um exemplo positivo foi o adiamento do prazo de defesa das dissertações de mestrado e teses de doutorado pela CAPES que, embora providencial, não deixará de impactar negativamente no avanço da pesquisa brasileira.
Além disso, diversos grupos de pesquisa – apoiados por editais emergenciais viabilizados em parte por doações de agentes privados – juntaram esforços para iniciar projetos de pesquisa em COVID-19, o que se tornou prioritário na Fiocruz, no Brasil e no mundo. Entretanto, vale ressaltar, que projetos envolvendo SARS-CoV-2 requerem um nível de biossegurança (e treinamento de equipe para tal) que é extremamente limitada em instituições de pesquisa no Brasil, o que representa mais um obstáculo a ser superado.
“(..) o alinhamento entre instituições de pesquisa e autoridades governamentais é fundamental para que as contribuições científicas tenham impacto no controle da pandemia. Da mesma forma, a integração entre setores público e privado pode ser de extrema valia para o sucesso dos avanços tecnológicos necessários ao controle, tratamento e prevenção da COVID-19.”
Muitos pesquisadores têm adaptado suas linhas de pesquisa para contribuir com a produção de conhecimento em COVID-19. Como você vê esse movimento?
Acho fantástico e absolutamente imprescindível. Adaptar suas capacidades para atender a demandas emergenciais de saúde pública é uma obrigação do cientista da área da saúde.
Nesse sentido, tanto o apoio de editais emergenciais quanto o estabelecimento de colaborações interdisciplinares estão sendo fundamentais para o estabelecimento de capacidades e para o desenvolvimento de novos projetos em COVID-19.
Vale ressaltar que o alinhamento entre instituições de pesquisa e autoridades governamentais é fundamental para que as contribuições científicas tenham impacto no controle da pandemia. Da mesma forma, a integração entre setores público e privado pode ser de extrema valia para o sucesso dos avanços tecnológicos necessários ao controle, tratamento e prevenção da COVID-19.
Mesmo à distância é preciso manter um grupo de pesquisa engajado e produtivo. Quais são as estratégias usadas na sua equipe?
Sem dúvida. É preciso manter a produtividade e o animo do grupo, o que tem sido um enorme desafio neste momento. Com a suspensão das atividades presenciais no laboratório, adotadas no plano de contingenciamento, nossa equipe foi direcionada a desempenhar atividades remotas. Essas atividades são ótimas alternativas para pesquisadores sêniores e/ou pesquisadores e alunos em fase de escrita de tese ou artigo, mas não são muito proveitosas para alunos de iniciação científica, mestrado, doutorado, técnicos e tecnologistas que desempenham a maior parte de suas atividades em laboratório. Para contornar essa limitação, todos os integrantes do grupo têm mantido constante diálogo utilizando plataformas de reuniões virtuais para tratar de quaisquer assuntos relativos ao laboratório.
Ainda em processo de redefinição das prioridades e redirecionamento de nossas linhas de pesquisa, engajamos a equipe em discussões semanais sobre COVID-19, incentivamos a participação em webinários regulares como os da Academia Brasileira de Ciências, da Academia Nacional de Medicina, Genética da UFRJ, entre outros. Em paralelo, mantivemos as discussões teóricas dos projetos já em desenvolvimento, mantivemos o cronograma das escritas de artigos e teses, incentivamos os alunos a participar de aulas remotas oferecidas pelos programas de pós-graduação e demais cursos de capacitação. E ainda incentivamos a capacitação de docentes para que ofereçam suas disciplinas de forma remota.
“Por mais que o papel da mulher na sociedade esteja em plena discussão e transformação, é inegável que ainda assumimos uma porção maior que a dos homens nas tarefas domésticas. Desigualdade, esta, muito evidente no Brasil. Ou seja, é fato que a soma das demandas familiar e profissional gera um ‘sobretrabalho’ que dificulta que a mulher mantenha sua produtividade”.
Com o incentivo das chamadas/editais emergenciais em COVID-19, elaboramos projetos em conjunto com membros do grupo, em tempo real, utilizando ferramentas da plataforma do Google e reuniões virtuais. Além disso, enquanto o plano de retorno das atividades está sendo estruturado, mantemos um rodízio de visitas ao laboratório para garantir a manutenção dos equipamentos e a infraestrutura.
O projeto brasileiro Parent in Science, que discute a maternidade na ciência, divulgou um estudo mostrando uma queda de mais 50% na disponibilidade de trabalho remoto entre os entrevistados com filhos. Esse número é ainda mais dramático para as cientistas: apenas 9,9% das entrevistadas com filhos admitiu conseguir trabalhar remotamente, contra 17,4% de homens com filhos. Como você avalia essa redução da disponibilidade de trabalho remoto em família com filhos?
A associação das tarefas domésticas com as profissionais tem, sem dúvida, um impacto negativo na produtividade dos pais, o que tem sido mais evidente no caso de mães com filhos pequenos.
A demanda diária de cuidados com os filhos que, antes da pandemia contava com o apoio de creches, escolas, familiares, babás e/ou funcionárias domésticas, hoje se soma às demandas profissionais. Isto é agravado no caso de pais de crianças em idade escolar que cursam escolas particulares, pois há necessidade constante de assistência para realização das tarefas online. No caso de pais de adolescentes e de jovens adultos, os cuidados diários podem ser mais brandos, entretanto, o apoio emocional tem exigido mais dos pais do que outrora. A falta da vida social, da indefinição da data do ENEM, ou da volta às aulas nas universidades públicas - fatores que marcam o início da construção dos seus futuros enquanto indivíduos e profissionais – são motivos de grande ansiedade.
Um dos webinários semanais da Academia Brasileira de Ciências (“Trabalho e Diversidade”, em 21 abril de 2020) discutiu como a produtividade das mulheres na ciência diminuiu desde o início da pandemia. Por mais que o papel da mulher na sociedade esteja em plena discussão e transformação, é inegável que ainda assumimos uma porção maior que a dos homens nas tarefas domésticas. Desigualdade, esta, muito evidente no Brasil. Ou seja, é fato que a soma das demandas familiar e profissional gera um “sobretrabalho” que dificulta que a mulher mantenha sua produtividade.
A divisão desigual de tarefas domésticas implica diretamente na menor participação feminina na academia, o que reflete em maior queda na produtividade de cientistas mulheres quando comparada à de cientistas homens.
Estudo canadense que analisou as publicações em repositórios de preprints, demonstrou uma já aparente queda na produtividade das mulheres quando comparada aos homens. Na sua opinião o que promove esse cenário?
As medidas de restrição da pandemia tornam evidentes desigualdades já existentes entre gêneros na vida acadêmica e profissional, de modo geral. A divisão desigual de tarefas domésticas implica diretamente na menor participação feminina na academia, o que reflete em maior queda na produtividade de cientistas mulheres quando comparada à de cientistas homens.
Nossa cultura é ainda muito machista, fomenta o papel do homem como principal provedor e da mulher como a responsável pelas tarefas do lar. Apesar da plena discussão a respeito destes papéis, grandes mudanças ainda estão por vir, a começar dentro das nossas próprias casas.
Além de uma crescente queda na produtividade, estudos apontam uma menor participação feminina em novos projetos quando comparada a períodos anteriores à pandemia. Como essa situação pode impactar futuramente a diversidade de gênero na ciência?
É muito provável que a menor participação de cientistas mulheres em projetos de pesquisa hoje repercuta em queda de produtividade futura, que é principalmente mensurada pelo número de artigos publicados. Mas meu otimismo me leva a pensar que isto seja reflexo momentâneo da pandemia e que nosso “novo normal” terá outro cenário. Vale lembrar que - apesar das desigualdades que a mulher enfrenta de modo geral - um relatório da Elsevier de 2017 (“Gender in Global Research Lanscape”) mostrou que o Brasil é líder em igualdade de gêneros na produção científica (de 2011-2015), tendo aproximadamente 50% dos artigos científicos com autoria feminina.
Torço para que esse marco seja novamente alcançado ou superado. Contudo, é possível que o impacto da pandemia na economia dificulte a normalização das atividades de creches, escolas e funcionárias domésticas (“rede de apoio”), o que pode afetar predominantemente o retorno das cientistas mulheres às atividades acadêmicas.
“Além da discussão sobre a competência profissional das mulheres, é de extrema importância que haja a discussão sobre o papel do homem na rotina familiar. É fundamental que pais e maridos participem ativamente das atividades domésticas e da educação dos filhos. “Ajudar” não é dividir. No caso de pais separados ou divorciados, a guarda compartilhada é o primeiro passo”.
Na sua opinião, quais seriam as estratégias para minimizar a disparidade de gênero ainda mais precipitada durante pandemia?
Acredito que a igualdade de gênero só acontecerá com mudanças sociais, culturais e econômicas alcançadas através da contínua discussão e atuação em diferentes espaços, incluindo o familiar, profissional, institucional, social e governamental. Inegavelmente, a educação tem papel fundamental nesse cenário. Além disso, a globalização e a conectividade são catalizadoras deste processo, contribuindo para a crescente conquista de espaço por mulheres no meio profissional.
Exemplos notáveis da inserção e liderança femininas não faltam no Brasil e no resto do mundo. A começar pela presidente da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Nísia Trindade, que tem demonstrado um trabalho de excelência tanto no comando quanto na divulgação do papel da instituição frente à pandemia. Outros exemplos inspiradores de atuação durante a COVID-19 incluem Dra. Helena Nader (Vice-presidente da Academia Brasileira de Ciências), Dra. Sonia Vasconcelos (Pesquisadora na área de Integridade em Pesquisa, UFRJ), Dra. Leila Mendonça (Pesquisadora e Coordenadora do Programa de Pós-graduação em Biologia Celular e Molecular, IOC, Fiocruz) e Dra Patricia Bozza (Pesquisadora do IOC, Fiocruz), entre outras.
No âmbito internacional, exemplos de lideranças femininas que tem atuado de forma assertiva no controle da pandemia incluem Jacinda Ardern (Primeira ministra da Nova Zelândia), Angela Merkel (Chanceler da Alemanha) e Melinda Gates (co-fundadora e co-presidente da Fundação Bill e Melinda Gates).
Além da discussão sobre a competência profissional das mulheres, é de extrema importância que haja a discussão sobre o papel do homem na rotina familiar. É fundamental que pais e maridos participem ativamente das atividades domésticas e da educação dos filhos. “Ajudar” não é dividir. No caso de pais separados ou divorciados, a guarda compartilhada é o primeiro passo.
Por Fernanda Fonseca e Gardênia Vargas
Equipe de Comunicação do CDTS/Fiocruz